sexta-feira, 15 de julho de 2016

Como se vence um sprint



O gigante alemão Marcel Kittel venceu a etapa 2 do Giro d'Italia deste ano, num sprint perfeito da equipa belga, Etixx-Quick Step. A Etixx chegou cedo à frente do pelotão e determinou o ritmo inicial. A Française des Jeux, de Arnaud Démare, chega-se à frente já dentro do quilómetro final, mas gasta muita energia para o fazer. Note-se no enorme esforço de Fabio Sabatini, o lançador da Etixx e de Kittel, depois de ser fechado pela FDJ para se posicionar novamente na frente do grupo, na melhor posição para que o seu sprinter despenda o mínimo de energia.

No final, Kittel sprinta e ninguém tem energia para ameaçar sequer o alemão. Vejam o excelente vídeo de análise deste sprint.


terça-feira, 12 de julho de 2016

A ideia errada de que não somos merecedores



Quem me conhece sabe que, de há uns anos para cá, deixei de ligar à selecção. O misto de jogadores pouco merecedores de usar a camisola e de uma histeria generalizada sempre que jogam as quinas foi demais pra mim. E acordei tarde para o que foi a maior noite do nosso futebol.

Por isso, para mim foi fácil ouvir as críticas que faziam à nossa selecção, cá dentro e lá fora, e ir com a maré: que jogávamos mal, que tivemos sorte, que não merecemos ganhar. Pensando bem sobre isso, não podiam estar mais enganados.

É verdade que esta não foi a equipa mais talentosa que apresentámos em palcos internacionais, longe das gerações de Eusébio e Figo (esta última a responsável pela sensação geral de que estamos entre os maiores, quando na verdade temos uma população muito pequena e estamos fora das verdadeiras elites do futebol europeu). A expectativa de que uma equipa deve, em teoria, jogar melhor não pode ser razão para dizer que uma equipa joga mal. Se olharmos para além de Ronaldo, vemos uma equipa composta por jogadores de ligas ou equipas secundárias, novatos nas grandes competições internacionais ou em idade para lá do seu pico de forma. A maneira como jogámos nos últimos anos demonstrou claramente que não nos estávamos a adaptar à realidade de que temos um conjunto com menos qualidade técnica. Foi o Fernando Santos, a quem tiro o chapéu, que percebeu o que tinha de fazer.

Gales e a Islândia fora apontados como os heróis deste campeonato, Portugal foi condenado por jogar demasiado à defesa. Sem desvirtuar todo o mérito dessas duas grandes equipas (cujo caminho segui talvez até com mais interesse do que o nosso), a Islândia teve uma média de 8 remates por jogo e Gales 11,3. Portugal teve 16. Não se pode cunhar uma equipa de defensiva por falhar golos, ou porque estamos à espera que marquem mais. A noção de que fomos uma equipa defensiva é quase tão errada como a de que tivemos sorte em passar a fase de grupos. Quanto muito tivemos azar! Num dia normal, as exibições contra a Áustria e a Islândia teria terminado em goleadas. Teremos tido alguma sorte em ficar, depois da fase de grupos, na metade mais fácil da tabela. Do outro lado, em quase todos os jogos seríamos os favoritos a ir para casa. No último jogo ganhámos a quem ganhou a todos os outros, portanto essa sorte vale o que vale.

Na final sim, jogámos à defesa, mas o que é suposto fazer uma equipa que, aos 25 minutos, fica sem o seu melhor jogador e referência no ataque, sem ter grandes soluções no banco? E desengane-se quem ache que jogar à defesa é jogar mal e que é só ficar ali sentadinho com o estaminé montado dentro da área. É desgastante, é preciso concentração, entreajuda, uma grande capacidade táctica: é preciso uma equipa - e isso é tão difícil de fazer numa selecção com jogadores que jogaram muito pouco uns com os outros. Essa foi a grande obra de Fernando Santos.

Portanto, a ideia de que Portugal jogou mal, à defesa e teve sorte é, no mínimo, dúbia e com provas em contrário. A única coisa que podem apontar é que Portugal não jogou bonito. Mas para isso, a beleza da história desta selecção - desde o passado de muitos dos jogadores, até perder a sua maior estrela durante a final e ser o patinho-feio a marcar o golo da vitória - chega e sobra.











segunda-feira, 11 de julho de 2016

O dia de Portugal



Ontem, dia 10 de Julho, foi um dia histórico para o desporto português. De manhã, Sara Moreira conquistou o ouro e Jéssica Augusto fechou o pódio. O 12º lugar de Dulce Félix garantiu ainda a vitória por equipas.



Depois, no triplo salto feminino, Patrícia Mamona venceu a prova no sexto e último salto, a 14m58, 20cm acima do seu recorde pessoal e nacional. No 5º lugar da mesma prova terminou Susana Costa que, com 14m34, bateu também o seu recorde pessoal.




Mais tarde seria feita história no lançamento, com Tsanko Aranudov a conquistar a primeira medalha de sempre, neste tipo de provas, para o nosso país. 20m59 logo no primeiro lançamento garantiram ao português a medalha de bronze.


Portugal termina o Campeonato Europeu de Atletismo com seis medalhas, três de ouro, uma de prata e duas de bronze, no 7º lugar de entre os 32 países participantes.

Num dia incrivelmente chuvoso nos pirinéus franceses, Rui Costa conseguiu finalmente integrar uma fuga. Tom Dumoulin foi mais forte nesse grupo e cortou a meta 38 segundos antes do português, que bateu Rafal Majka no sprint pelo segundo lugar. Rui Costa é agora 48º na geral, mas o próprio já referiu que a classificação final não é o objectivo para este ano e que vai continuar a lutar pelas vitórias em etapas.


De noite foi a festa que todos conhecem. Portugal é Campeão Europeu de futebol, num dos anos mais improváveis para o ser pelas exibições no percurso até à final. Com Cristiano Ronaldo a sair lesionado bem cedo no jogo e Éder - de todos, foi o Éder! - a coroar uma óptima exibição com o golo da vitória, o caminho desta selecção dará uma boa história.









domingo, 19 de junho de 2016

A festa nas bancadas

Desengane-se quem acha que os adeptos não têm importância num jogo de futebol. Bastariam as estatísticas de resultados em Casa vs Fora para mostrar que isso não se deve apenas à maior ou menor habituação ao terreno e ambiente. Mais importante do que isso, os adeptos que estão presentes contribuem para o sentimento geral da equipa, nesse jogo e nos seguintes - um público que apoia incondicionalmente ajudará a acalmar uma equipa e isso tornará os seus jogadores mais confiantes, enquanto que adeptos mais nervosos e insatisfeitos fazem uma equipa tremer e jogar com ansiedade.

E depois há estes. Não faço ideia de que efeito têm na equipa que apoiam.


O meu top 3:

- You've only scored four / you've only scored four / how shit must you be / you've only score four

- We lose every week / we lose every week / you're nothing special / we lose every week (boa maneira de desmotivar o adversário durante uma vitória)

- We're gonna win 5-4 / We're gonna win 5-4 / We're gonna win 5-4 / 5-4!!!










domingo, 5 de junho de 2016

O legado de Ali




Para além do gigante que foi dentro de um ringue de boxe e, simultaneamente, como a cara de um movimento anti-racismo que não pretendia esquecer nem desculpar nenhuma parte da história, Muhammad Ali foi um modelo, mais abrangente, para todos os atletas que se seguiram temporalmente.

"Ele deu à comunidade negra muita coragem e mudou a nossa mentalidade: tu podes ser uma superestrela e não ser discreto. Tu podes dar voz às tuas opiniões e ser controverso e ainda assim ser um campeão."
Channing Frye, membro dos Cleveland Cavaliers 

A dádiva não foi só para a comunidade negra, e não se confina aos limites do desporto. Muhammad Ali mostrou que a ferocidade de um murro pode ser usada fora do ringue, ou das quatro linhas, para coisas maiores. Mas também que se formos nós próprios, livres, lá dentro, se mostrarmos quem somos verdadeiramente, teremos com isso a possibilidade de ser um exemplo para os que nos rodeiam e quem se segue. Se és mau, sê mau, porque se o fizeres dentro dos limites que o meio estabelece a olho, serás respeitado por isso. Mas se és bom, então sê bom. Se acreditas nalguma coisa, aplica-a dentro e fora do campo. Se fores lá dentro aquilo que és cá fora, que és verdadeiramente, serás melhor em tudo. Este é também o legado de Ali.



domingo, 16 de agosto de 2015

Ficou mais difusa a divisão entre homens e mulheres no atletismo

Relacionada com a questão da divisão entre mulheres e homens no desporto, de que tenho escrito bastante, está a posição dos atletas andróginos, sobretudo das mulheres que produzem mais testosterona do que o considerado normal. Mas este mês, o tribunal que rege estas questões esbateu mais a linha que divide homens e mulheres, acrescentando: "Nature is not neat. There is no simgle determination of sex".




Tratando especificamente do caso da sprinter sub-18 indiana, Dutee Chand, que tinha sido proibida de competir em 2014 por ter hiperandroginismo, ou seja, por ter mais testosterona produzida naturalmente pelo seu corpo do que o limite para atletas femininas, o Tribunal Arbitral do Desporto declarou que "foi incapaz de concluir que atletas femininas hiperandróginas possam beneficiar de uma tal vantagem de performance que seja necessário impedi-las de participarem nas categorias femininas" (escusado será dizer que também não podiam participar nas masculinas, ficando portanto banidas do desporto oficial).

O tribunal disse ainda que "existindo categorias masculinas e femininas, será necessário que o IAAF formule uma base para a divisão de atletas nessas categorias (...) A base escolhida deve ser necessária, razoável e proporcional para legitimar o objectivo que se quer atingir." Ora, na minha opinião, isto apenas abre a discussão sobre a abolição formal destas barreiras, permitindo que mulheres e homens compitam nas mesmas ligas e provas. Numa altura em que também fora do desporto se põe em causa as definições tradicionais de homem e mulher, esta discussão vem totalmente a propósito e pode muito bem servir como exemplo para tudo o resto.

Dutee Chand rejeitou as recomendações que lhe fizeram para que tomasse medicação ou que fizesse cirurgia para reprimir a produção de testosterona do seu corpo.
"What I had to face last year was not fair. I have a right to run and compete. But that right was taken away from me. I was humiliated for something that I can't be blamed for. I am glad that no other female athlete will have to face what I have faced, thanks to this verdict" 

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

domingo, 19 de julho de 2015

Jaden Newman quer ser a primeira mulher na NBA



Jaden tem 10 anos e joga na equipa principal da Downey Christian School, uma escola secundária privada, desde os 7. Isso quer dizer que Jaden joga contra raparigas de 17 anos. E é titular. Mais impressionante do que isso, Jaden domina: 30,5 pontos, 9,2 assistências e 6,0 roubos de bola por jogo, na época passada.

Estamos a falar de uma liga em que os resultados muito raramente chegam acima dos 70 pontos, o que significa que Jaden marca quase metade dos pontos da sua equipa. Esse tipo de desiquilíbrios é comum nas ligas juvenis, mas nunca vindo de alguém tão novo.

Jaden sempre jogou com os rapazes e sempre foi melhor do que eles. Aos 7 anos entrou para a equipa  feminina de Varsity (ou seja, a equipa principal da escola). O pai é o treinador principal da equipa e, como é óbvio, muitas pessoas dizem que só por isso é que uma miúda tão nova pode estar ali. Mas isso é antes de a verem jogar.

Jaden é nova o suficiente para ter o sonho de jogar na NBA e ser a primeira mulher a fazê-lo; o cepticismo de quem luta para mudar as coisas e não vê resultados disso só vem com a idade. Talvez as coisas venham a evoluir o suficiente para acompanhar o seu crescimento, uma vez que a nossa sociedade parece estar a ficar mais maleável nestes assuntos. Talvez Jaden consiga ser de facto a primeira mulher na NBA. E é isso que lhe dá o combustível para continuar a trabalhar. 

Como disse aqui há uns tempos, não é só a capacidade física que determina a qualidade de um jogador: factores como o tempo de imersão no desporto, o incentivo externo dos pais e colegas, a qualidade dos treinos e da liga e a motivação pessoal são tão ou mais importantes. A Jaden não lhe falta nenhuma destas coisas e é por isso que ela domina o seu desporto, mesmo entre rapazes.

A capacidade de Jaden sonhar e lutar por esse sonho começa a mudar também as pessoas à sua volta. Vemos isso neste breve documentário da Bleacher Report: quem a conhece, sonha também. Só quem não tem tecto para as suas aspirações tem liberdade para atingir o seu potencial e isso é algo que as mulheres, no desporto, quase nunca tiveram.


domingo, 28 de junho de 2015

A importância do desporto III - jogos não são só jogos, são a experiência

"As game designers, we must confront the painful truth that many people view games, in all their forms, as meaningless diversions. Usually, when I press people who hold this view, I can get them to admit some game that is very important to them. Sometimes it is a sport, either one they have played or one they watch religiously. Sometimes itis a card or board game that formed the cornerstone of tehir relationship with someone important to them. Sometimes it is a videogame with a storyline and characters they identify with. 
When I point out the hypocrisy of games as meaningless but a game as meaningful, they explain, "Well, it really wasn't the game I cared about - it was the experience that we t with the game." But as we've discussed, experiences aren't just associated with games at random; they are what emerge when players interact with a game. The parts of the experience that are important to people, such as the drama of a sporting event, the camaraderie between bridge players, or the rivalry of chess entusiasts, all are determined by the design of the game." 
Jesse Schell, The Art of Game Design



Acho que não conheço alguém a quem nenhum jogo tenha proporcionado uma experiência marcante, e com sorte de uma maneira profunda. Mesmo quando os desportos e jogos eram coisas muito mais simples e abstractas isso acontecia. Existe o argumento de que os jogos são artefactos demasiado primitivos para que uma experiência significativa nasça deles, mas mesmo nos mais simples existe a camaradagem, a mestria e o esforço físico ou mental e a luta por um objectivo, todos eles capazes de estruturar uma pessoa. Mas com a tecnologia que tem aparecido nesta área e a expressão artística aliada a ela, os jogos podem perfeitamente criar uma história e um ambiente tão marcantes como um filme ou um livro (isto já me aconteceu com os jogos da série Fallout).

"Ultimately, a game designer does not care about games. Games are merely a means to an end. On their own, games are just artifacts - clumps of cardboard or bags of bits. Games are worthless unless people play them. Why is this? What magic happens when games are played? When people play games, they have an experience. Without the experience, the game is worthless." 
Jesse Schell, The Art of Game Design

Jogos diferentes criam experiências diferentes, e mesmo num só jogo a experiência não é igual para todas as pessoas. Muita gente vê futebol porque o jogo é familiar e ver um jogador fazer uma certa jogada activa os seus neurónios espelho mais facilmente do que em qualquer outro desporto; outros porque a liberdade de movimentos os inspira; eu só vejo porque a massa de adeptos que gravita em torno do futebol me puxa também. É por isso que temos desportos e jogos diferentes, o que não quer dizer que uns não sejam mais propícios a dar-nos uma experiência positiva específica, como os videojogos que têm uma história associada ou jogos de tabuleiro com um tema forte e bem expresso.

Em jogos de tabuleiro ou videojogos, ou qualquer tipo de desportos, o que importa não é o jogo, não é o conjunto de regras a usar para atingir um objectivo, é a experiência. Independentemente de estarmos a ver ou a praticar, o que de importante retiramos de um jogo, é a experiência de ganhar ou perder, de ultrapassar barreiras do nosso corpo, a emoção de uma jogada específica, a união com os que estiveram lá connosco. O jogo em si não é essa experiência, ele apenas possibilita que ela exista. No final de contas, um jogo dá-nos mais do que apenas o resultado do puzzle.




quinta-feira, 18 de junho de 2015

Um mau dia para Mount Hermon



A fotografia tem cerca de 50 anos e é das coisas mais estranhas que já vi durante um jogo. Mesmo na altura, quando a alteração de imagens não era comum, a fotografia era demasiado incrível para ser verdadeira. Ainda assim foi um clássico instantâneo, replicado em todos os jornais, de todo o mundo, com títulos que brincavam com a "rivalidade ardente" entre as duas equipas.

A fotografia é real. O que fez com que duas equipas e tantos adeptos continuassem com o desporto enquanto um edifício da escola de Mount Hermon, Massachusetts, onde o jogo decorria, ardia a este ponto? Eram muitas as teorias, levando a discussões sobre a devoção pouco saudável dos americanos ao football, capacidade de concentração de jogadores e árbitros, à falta de coerência das prioridades dos adeptos ou da falta de protocolos para lidar com incêndios.

A fotografia é real, mas engana. Na verdade o edifício está a 90 metros do campo. O jogo parou quando o fogo começou, mas os bombeiros quiseram manter toda a gente afastada e pediram para que o jogo continuasse, para que menos pessoas estivessem a atrapalhar.

Ao intervalo a equipa da casa perdia por 20-0 contra a Deerfield Academy. A última coisa que queriam ouvir é que o jogo ia continuar; o ar estava quente e as forças de que precisariam para dar a volta ao jogo começavam a faltar. Mas o jogo continuou. Enquanto muitos dos alunos combatiam o incêndio no edifício das ciências, os colegas começaram a dar a volta dentro de campo. 20-14, um touchdown de diferença, nos momentos finais, com a posse de bola para a equipa da casa. O treinador de Deerfield fez uma jogada defensiva arriscada, mudando um jogador de posição para que ele pudesse tentar placar o quarterback de Mount Hermon. Assim foi. Mount Hermon perdeu o jogo e o edifício das ciências no mesmo dia.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Jorges Jesus - o que eu vejo

A história já tem um par de semanas e mesmo assim ainda não parece bem verdade. Acho que só me vai cair a ficha quando o vir nos jornais com o cachecol do Sporting, a treinar jogadores do Sporting, no campo do Sporting. Não quero com isto dizer que estou triste, desesperado, sem querer acreditar que é verdade. É só porque coisas destas só acontecem nas novelas. Eu já devia saber que no desporto também.



A época do Quique Flores foi dos anos em que mais afastado estive do Benfica, em parte porque estive fora do país durante algum tempo, em parte porque jogávamos mal como tudo com uma equipa que, comparando com anos de má memória ainda bem recentes, era boa. Obrigado Quique por nos dares o Maxi, mas serviste para pouco mais. Depois chegou o Jorge Jesus. Mal tinha ouvido falar dele, não andava muito embrenhado no futebol, mas gostei da pinta. Sobretudo porque muitas pessoas acham que um treinador é um gajo bem falante como o Quique, com classe, quando um treinador apenas tem de meter a malta a jogar à bola.

Nunca tinha visto o Benfica a jogar assim, como o fez na primeira época do Jesus. Nunca tinha visto a alegria dos adeptos, ao ponto de perdoarem todos os erros e teimosias do treinador. Foi de tal modo que esse estado de graça aguentou-o durante duas épocas de maus resultados e menos bom futebol. Mas depois disso a paciência da maioria não dava para mais. No ano em que o Benfica à Jesus passou realmente a ser o Benfica à Jesus, com um futebol menos efusivo mas sólido que nem uma rocha, os títulos foram pelo ralo num misto de erros teimosos e mau olhado. Eu estava lá na final da taça, contra o Guimarães, e lembro-me, como se fosse hoje, de duas coisas: do ar triste do Coentrão, que tinha ido ver o jogo, a sair do estádio no seu carrão com toda a gente a pedir-lhe para voltar ao Benfica, e de ter defendido com toda a força a crença em que a continuação do Jesus era o melhor para o Benfica. Ainda bem que o Filipe Vieira achava o mesmo.

Por isso é que é tão estranho o que se passa neste momento. O Benfica é bi-campeão, os adeptos estão do lado de toda a estrutura, a equipa está sólida e não parece que vá ser desmembrada, ao contrário do que se passou nos últimos anos. Finalmente parecia que o Jesus tinha as bases para conseguir um dos seus sonhos: construir uma equipa para ganhar a Champions. Mais do que isso, o Jesus ia ficar na história do Benfica - e de todo o futebol - como um herói se continuasse por muitos e bons anos. Ele estava no topo e continuava a construir para chegar mais alto.

A saída dele é uma machadada grande para o Benfica (só o Luís Filipe Vieira parece achar que não), mas também para o próprio Jesus. O Sporting - pondo de lado o amor que tem ao clube - é o pior casamento para ele: tem uma personalidade exibicionista como presidente, o que vai dar dores de cabeça aos dois; não vai ter dinheiro para construir uma equipa ao seu jeito; a filosofia da equipa é apostar na formação, que é o oposto da filosofia dele; e vai para um clube com muitos problemas estruturais que pioram as condições de trabalho da equipa.

A questão é que não se pode pôr de lado o amor que tem ao clube. Para mim apenas isso (aliado à vontade de revolta contra Luís Filipe Vieira, se as notícias de que o presidente achava que não precisava de Jesus forem verdadeiras e ele soubesse disso) justifica a decisão do Jesus. O Sporting está numa fase má com tendência para melhorar, e imagino que o Jesus se queira transformar na pessoa que devolveu a glória ao seu clube do coração. Se essa for a sua motivação, ninguém lhe pode atirar à cara a decisão, mesmo que venha a ser errada do ponto de vista da sua carreira. Ele pôs-se a si mesmo num lugar que pertencia aos seus sonhos.



Infelizmente para ele, muitos vão passar a vê-lo como o treinador que mudou para o rival. Aquilo que significava para o Benfica mirrou e perdeu força. Agora é apenas um bom treinador, com três campeonatos ganhos e outros feitos, e não um herói do clube. Muitos chamá-lo-ão de traidor, e com razão. Não se traiu a ele próprio, mas traiu quem apostou nele e lhe deu liberdade para ficar na história. Dessa mudança ele não se safa, e irá senti-la todos os dias.





segunda-feira, 13 de abril de 2015

O estado do desporto em Portugal



O Comité Olímpico de Portugal (COP) entregou no parlamento e às federações, dia 9 de Abril, um documento que retrata o panorama geral do desporto no nosso país. As conclusões principais que expõem servem para desmanchar o mito de que a falta de resultados é uma questão de falta de finaciamento. Também é, mas não só.
"Portugal tem um número diminuto de modalidades na primeira linha da alta competição mundial e, nas que alcançam esse estatuto, o número de atletas é igualmente diminuto. Os êxitos individuais em competições de primeira grandeza são devidos, na sua maioria, a 'exemplares únicos', circunstancialmente emergentes de contextos particulares e normalmente irrepetíveis, que não reflectem nem podem assegurar ao país um nível representativo estabilizado."
- relatório do COP



Este é o principal sintoma identificado no relatório e que deve servir de base para a discussão sobre o estado do desporto em Portugal. Não concordo totalmente com a primeira afirmação - para um país pequeno, estamos presentes a um bom nível em vários desportos diferentes, o que significa que, ou o potencial existe, ou os atletas que mostram resultados acabam por ter os mesmos apoios e condições que os atletas de topo nas várias modalidades (o que é bem possível, uma vez que no desporto nacional muitas vezes se mete os ovos todos no mesmo cesto). Quanto ao resto, não há dúvida de que a análise é correcta, talvez com a excepção do ténis de mesa - um fenómeno que talvez valha a pena analisar - e do futebol pelas razões conhecidas, e onde mesmo assim se depende de meia dúzia de talentos. O pior é mesmo a falta de consistência dos resultados, mesmo em desportos colectivos, estando as várias selecções dependentes do desempenho de alguns atletas chave; aumenta a pressão em cima desses atletas e as frustrações são mais comuns porque não há um plano B.

Outra crítica apontada pelo COP é a disseminação mais ou menos caótica de Centros de Alto Rendimento por todo o país. 

"Há alguma coisa estranha quando um país como Portugal, com défice de prática desportiva, apresenta números de CAR superiores a outros países [cerca de duas dezenas] (...) Muitas infra-estruturas estão aquém do que podiam oferecer porque não foram adequadas, tanto na localização como nas medidas de gestão."
- José Manuel Constantino, presidente do COP

Já Vicente Moura, anterior presidente do Comité, tinha criticado a construção dos CAR em 2013, lamentando "que não sejam conhecidos os critérios que deram origem à construção dos centros de alto rendimento, e que não tenha sido estudada a sua forma de gestão." Defendeu na altura aquilo que faz mais sentido num país com a nossa dimensão: que existissem três CAR (eu diria três mais um em Lisboa, para que não se concentrasse tudo, mais uma vez, nas principais cidades) nas zonas que fizessem mais sentido, com todas as valências. 

Este último ponto, o da multidisciplinariedade, é o mais relevante. Criar um CAR em Montemor-o-velho para desportos náuticos, um nas Caldas da Rainha para o Badminton e um em Peniche especificamente para Surf, mesmo que faça sentido pelo facto de lá estarem as federações ou os principais praticantes, acaba por condená-los ao quase abandono e elimina as grandes vantagens de concentrar várias modalidades num mesmo sítio. 

Centro de Alto Rendimento, Caldas da Rainha

Lembro-me bem quando foi criado o CAR de Badminton nas Caldas da Rainha, porque praticava a modalidade na altura: óptimas condições e mais tempo de imersão na modalidade, que se fizeram sentir nas performances dos principais atletas, mas um nítido sub-aproveitamento do espaço pela especificidade da utilização, que não tinha expressão real na zona e não era utilizado sem ser por atletas em preparação para grandes provas ou durante os torneios raros para o campeonato nacional - a população da região, por exemplo, pouco interesse tinha na infra-estrutura.

"Não podemos desvalorizar a questão do financiamento (...) Mas a questão do financiamento não pode ser a questão decisiva. Se colocarmos a tónica exclusivamente no financiamento estamos a criar uma ilusão. O desporto precisa de mais recursos financeiros, mas também de outras medidas que complementem o fluxo financeiro, sob pena de colocarmos o dinheiro em cima dos problemas e continuarmos com os problemas. É necessário que outros factores ocorram: a formação dos técnicos, a melhoria da resposta do tecido associativo, a educação física nas escolas" 
- José Manuel Constantino, presidente do COP

A questão das escolas é, provavelmente, a mais importante, com uma falta de orientação latente: ora se fazem medidas que sublinham a importância do desporto para o bem-estar dos alunos, ora se lhe retira peso curricular. A escola é muitas vezes o primeiro sítio onde temos contacto com o desporto e influencia muito o peso que tem na nossa vida futura, o quanto gostamos de o fazer e quanto tempo passamos a fazê-lo (duas coisas fundamentais, talvez as principais, para formar bons atletas). Talvez seja uma boa altura para estudar o modelo americano, onde não só se formam atletas incríveis com os quais ninguém consegue competir, mas também onde o desporto tem um impacto mais positivo na sociedade.




domingo, 5 de abril de 2015

Os Jogos do Sério - Hóquei em patins



É altura de mais um "Jogo do Sério". Há uns tempos assisti ao vivo a um jogo de iniciados, CACO vs Paço d'Arcos, e fiquei realmente impressionado com o que vi. Vamos às pontuações:

Watchability (isto é divertido de ver?): 10

É o primeiro 10 que dou em watchability. Só o facto de ser jogado em patins torna o desporto bom de se ver, a capacidade técnica por si seria suficiente, mas os movimentos fluídos tornam a coisa ainda mais bonita. É um desporto onde se ataca constantemente com transições rápidas pelo meio e com poucos momentos mortos. Além disso, e para quem vê ao vivo, o ambiente nos pavilhões é fantástico e os sons característicos do hóquei - as pancadas secas e agudas dos sticks e o raspar dos patins nas derrapagens - só servem para aumentar a mística dos jogos. Até o tal jogo de iniciados que eu vi foi emocionante! O único senão neste ponto é o facto de, na televisão, ser por vezes difícil de seguir a bola e ver as defesas dos guarda-redes, mas isso nem meio ponto retira.

Jogabilidade (isto é divertido e fácil de jogar?): 6

Divertido deve ser, e muito. Mas fácil não é de certeza. Tem de se aprender toda uma nova habilidade antes de se poder praticar a modalidade, e hóquei sem patins não é tão divertido. Para além disso é preciso equipamento muito específico (e caro) e é jogado em pavilhão.



Factor cool: 8

Admito que acho que tem swag ver o pessoal a andar na rua com o stick às costas, e a beleza e pujança física do desporto dão-lhe algum magnetismo. Ainda assim é um desporto com pouca visibilidade, infelizmente, e praticamente inexistente fora dos países latinos.

Handicap: -2

Quase todos os pontos contra estão incluídos nos factores anteriores. A única coisa que falta mencionar é a propensão para lesões dolorosas (stickadas, boladas e quedas feias) ou prolongadas (joelhos, devido à posição e movimentos do corpo, sobretudo no caso dos guarda-redes).


FINAL SCORE: 22




quinta-feira, 2 de abril de 2015

Jogar com a cabeça



O Rajon Rondo, base dos Dallas Mavericks, é um dos jogadores mais inteligentes que já vi jogar, seja em que desporto for. Mais do que isso, é daqueles tipos que parece tomar as melhores decisões em fracções de segundo, por instinto.

No último jogo dos texanos, contra os Oklahoma City Thunder, o Rondo fez mais uma dessas. Primeiro, mergulhou sobre uma bola meio perdida, forçando o jump ball (quando a bola é agarrada simultaneamente por jogadores de equipas diferentes, a decisão é feita em "bola ao ar"). Só que calhou que, do outro lado, estava Mitch McGary, 25cm mais alto que Rondo. O normal seria uma de duas coisas: ou nem tentar e conservar energias, ou esforçar-se ao máximo por ganhar a bola ao ar através da sua capacidade física, como tinha feito contra Udonis Haslem (15cm mais alto).



A decisão mais inteligente, claro, foi a que Rondo tomou. É impressionante como ele compreende que, na diferença entre Haslem e McGary (10cm) está a fronteira que separa uma bola que ele consegue ganhar de uma impossível. Pela posição do corpo do adversário, e sabendo que ele não teria grande dificuldade em chegar à bola, o sítio mais lógico para onde McGary iria passar seria para o seu lado esquerdo. Rondo espera que McGary salte e lança-se para o sítio onde ele achava que a bola iria estar. Depois de alguns ressaltos ganha a bola e os Mavericks marcam numa transição fácil. O jogo estava ainda no início, 21-17 para os Dallas, mas a verdade é que Rondo impediu a posso de bola e possível cesto dos Thunder e fez com que a sua equipa marcasse os dois pontos. Um 4-point-swing, portanto. O jogo terminou 135-131 para Dallas.



segunda-feira, 30 de março de 2015

Golden State Warrios conquistam um título 39 anos depois

NBA.com

Desde há uns anos que os Golden State são a equipa que mais gosto de ver jogar - apesar de não serem a minha equipa favorita - mais ou menos desde a altura que Stephen Curry entrou, em 2009. A sinergia da equipa tem vindo a crescer ao longo destes anos e as entradas de Bogut (2012) e Iguodala (2013), dois jogadores com o seu valor confirmado na liga, fizeram dos Golden State candidatos ao título.

A qualidade que mostraram este ano é incrível, sobretudo por ser tão consistente e difícil de contrariar. É a terceira vez consecutiva que vão aos playoffs e é precisamente a experiência adquirida nestes últimos anos que os torna na equipa a abater.

sábado, 14 de março de 2015

O "Combine"



Na viagem de regresso do nosso último jogo, um dos capitães da minha equipa explicou de uma maneira muito breve uma das coisas que faz do Futebol Americano um dos desportos mais espectaculares: a capacidade atlética dos jogadores.

Estava ele a dizer que, em conversa, começou a explicar o que é o Scouting Combine da NFL - um evento de uma semana onde se reúnem todos os candidatos ao draft desse ano, participando em provas físicas e mentais que são vistas e avaliadas pelos vários treinadores e GM's das equipas.


"Portanto, são uma espécie de testes que fazem aos jogadores para avaliar o potencial deles?", perguntaram-lhe. "Sim", respondeu ele, "só que aqui batem-se recordes do mundo". Byron Jones, no Combine deste ano, bateu o recorde do mundo de Standing Long Jump, uma competição que já foi Olímpica e que ainda faz parte de alguns campeonatos de atletismo. Jones bateu o recorde anterior de 3m47 com a marca de 3m73.


sexta-feira, 13 de março de 2015

As diferentes maneiras de recordar um atleta

Há alturas em que o jornalismo desportivo português é um desgosto. Dia 10 de Março, um acidente entre dois helicópteros fez 10 vítimas mortais, entre as quais 3 atletas franceses (Camille Muffat, Alexis Vastine e Florence Arthaud), quando iam a caminho do local onde seria filmado um reality show - Dropped - seriam largados "no meio do nada" e teriam de regressar à base sem ajudas externas.

O "Record" do dia seguinte pintou uma história desinspirada sobre o assunto, lá nas últimas páginas e sob o tema "Modalidades", enumerando os atletas e alguns dos seus feitos, onde e a que horas se deu o acidente, referindo meia dúzia de reacções de outros atletas e François Hollande e compilando uma lista de outros acidentes aéreos envolvendo atletas. A reportagem começa assim: 

"Passadas mais de 24 horas do acidente que vitimou dez pessoas num choque entre dois helicópteros na Argentina, as causas continuam a ser desconhecidas, mas ninguém tem dúvidas que se trata da maior tragédia da história relacionada com a produção de um "reality show" de sobrevivência". 

Ler esta notícia nem é sequer triste, apesar do tema. Não faz nada por nós, não se esforça por recordar a memória dos atletas envolvidos nem nos aproxima do drama da situação.

Por sorte, li o "New York Times" do mesmo dia. Na capa tinha uma notícia com o título "She rode the waves, and broke barriers". Não reconheci quem era a pessoa na fotografia, mas percebi que seria alguém que tinha morrido num desastre de helicóptero no dia anterior. Era Florence Arthaud, apresentada pelo jornal como sendo "once the most popular sports figure in France: quite the achievement for a diminutive female sailor in a country with no shortage of soccer, rugby, basketball and tennis stars". A reportagem continuava na página 3 (sobre o acidente) e na página 13 (sobre Florence). A notícia sobre o acidente segue um caminho bastante normal, com as circunstâncias e os envolvidos, mas algumas citações dão-lhe uma profundidade digna do momento. Mas o texto sobre Florence Arthaud é completamente diferente e marcou a minha maneira de ver escrever sobre atletas. Resumo brevemente o artigo.



A sua popularidade nasce, primeiro que tudo, da ligação forte que os franceses têm com o acto de velejar, sobretudo a solo. 

"I think the French like solitary heroes: adventurers, travelers (...) I think our culture is more oriented toward the individual exploit, while the Angol-Saxons have a culture that's more oriented toward collective accomplishment. We seem to have trouble getting organized as a group", Isabelle Autissier, outra velejadora francesa. 

Quando, em 1990, Arthaud venceu a Route du Rhum, prova transatlântica quadrienal entre França e Guadalupe, ela venceu também o preconceito de que os homens são mais capazes de aguentar o rigor duma prova destas. Deram-lhe a alcunha de La Petite Fiancée de l'Atlantique e tornou-se numa estrela e num símbolo. Depois disso teve dificuldades em transformar esse feito em novas vitórias. Os problemas económicos em França nos anos 90 e o seu carácter tempestuoso tornaram difícil arranjar patrocinadores.

"Florence was someone extraordinary on the water but uncontrollable on land, and that worked against her. She ate. She drank. She smoked (...) That was without a doubt not to the taste of the sponsors. Look at today's sailors. They are more settled, more polished, more good boys", disse Autissier.

Arthaud não voltou a competir ao mais alto nível, mas isso não fez com que a geração seguinte de velejadores, e alguns até da sua geração, não se sentissem particularmente inspirados pela francesa. Autissier, Catherine Chabaud, Ellen MacArthur, todas grandes figuras do desporto e todas com um mesmo ídolo: Florence.

Participou pela primeira vez na Route du Rhum aos 21 anos, sendo a única mulher e a mais nova de entre todos os participante, terminando em 11º lugar. 12 anos depois bateu o recorde da travessia a solo do Atlântico mais rápida, em menos de 10 dias. Em Novembro do mesmo ano venceu a Route du Rhum. "Calm down!", gritou ao molhe de jornalistas e fotógrafos que a rodeavam depois dos 14 dias e 10 horas da prova em Guadalupe.

"I really don't think the world of sailors is a macho world. I think it's a world where people respect each other for their talents".
Em 2011, Florence Arthaud quase morreu quando caiu do seu barco durante a noite enquanto viajava na costa da Córsega. O veleiro continuou o percurso, em piloto automático, e Arthaud ficou para trás sem colete de salvação. Felizmente tinha ficado com o seu telemóvel e uma lanterna, com os quais conseguiu ligar a pedir assistência, que chegou duas horas depois. "I'm a surviver. The devil didn't want me". Arthaud viria a morrer quatro anos depois, num acidente de helicóptero.



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Nunca tinha ouvido falar de Florence Arthaud, mas esta breve notícia pintou-me uma imagem vívida de uma personalidade forte de alguém que fazia o que queria. E é assim que todos os grandes atletas, devem ser lembrados: pela maneira como nos tocaram fazendo aquilo que sabem melhor.


sexta-feira, 6 de março de 2015

Regras do futebol ficam na Idade da Pedra mais um ano




Dia 28 de Fevereiro reuniu-se o International Football Association Board (IFAB) para discutir possíveis alterações às regras do futebol. A saber, estavam em cima da mesa decisões sobre:

- o fim do "castigo triplo" (que é quando um jogador de campo defende a bola com a mão e faz penalti, é expulso e leva uma suspensão),
- a existência de uma quarta substituição se o jogo for a prolongamento,
- o uso de tecnologias para medir a performance dos atletas
- e a existência de substituições flexíveis nas camadas jovens.

Para discussão (ficou logo bem claro que nenhuma decisão seria tomada sobre o assunto) estava também o uso das repetições em vídeo para ajudar os árbitros na tomada de decisões.

Primeiro que tudo: é só isto que têm para discutir num ano inteiro de futebol? Se formos ver a lista de alterações que este organismo fez ao futebol, percebemos que estas não são as pessoas mais proactivas do mundo - 6 alterações, 3 delas à mesma regra. Acho que 4 gajos sentados no café em dia de jogo abordam mais temas do que esta malta. Já agora, o IFAB é composto por 8 pessoas, 4 representantes da FIFA e um de cada uma das ligas britânicas. O voto vale o mesmo para todos e é necessário uma maioria de 3/4 para passar uma lei - que é o mesmo que dizer que se, ou a FIFA, ou os britânicos, não quiserem uma lei, ela não passa. Parece justo.

A decisão mais importante que tomaram foi relativamente ao "castigo triplo", e mesmo essa nem foi bem uma decisão - eventualmente, algures no futuro, esse jogador deixará de ser suspenso. É coisa para não abalar muito o mundo do futebol.

A quarta substituição não será introduzida, porque segundo eles não há razões para o fazer. Quem já viu meia-dúzia de jogos que foram a prolongamento e sabe que a qualidade do jogo cai bastante com a crescente fadiga física. As equipas partem-se ao meio e os defesas só defendem e os avançados só atacam. Há treinadores que decidem guardar uma substituição para o prolongamento, porque muitas vezes esse jogador faz a equipa inteira andar, unindo as duas metades. Mas talvez seja preferível os prolongamentos continuarem a parecer o Solteiros vs Casados do bairro.

A utilização de tecnologia para medir a performance dos jogadores será aceite, desde que a informação não seja usada durante o jogo. Tudo bem.

As substituições flexíveis (ou seja, o mesmo jogador poderá ser substituído e voltar a entrar) nas camadas jovens foram aceites; resta saber em que condições.

Quanto ao caso mais sério, a utilização do vídeo para apoiar os árbitros, ficou em águas de bacalhau. A razão principal para terem adiado a decisão é, justificam, que 1. é uma decisão muito importante para ser tomada de ânimo leve, "the biggest decision ever made in the way football is played" e 2. que precisam de mais informação.

Isto é preguiça ou falta de visão?
1: a biggest decision ever made não é esta, nem de longe. Isto nem sequer altera a maneira como se joga (talvez o teatro deixe de fazer parte do jogo, mas isso é bom!). Antigamente as equipas tinham 20 jogadores, não havia guarda-redes, as balizas não tinham altura máxima, o jogo durava duas horas ou mais e não havia foras-de-jogo. Isso sim foram alterações nos fundamentos do jogo, agora se os árbitros podem ou não fazer melhor o seu trabalho nem devia estar em discussão.
2: se precisam de mais informação vão aos EUA, eles usam isso em vários desportos e de maneiras diferentes, é como ir a um buffet: é só escolher. E se precisam realmente de mais informação, porque é que proibiram a Holanda de usar esse método na taça, quando isso poderia trazer-vos os dados que precisam sem terem de pôr o pescoço em risco (afinal, foram eles que se ofereceram)?

Quem são estas pessoas?


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

"We aren't robots"

Por cá já vamos estando habituados ao circo montado à volta dos desportistas. Em alguns casos já pouco separa a vida profissional e pessoal dos atletas, e em nenhum sítio tão pequena é essa separção como nos EUA. Os patrocinadores pagam bem para propagandear as personalidades dos seus jogadores, chamando a atenção para eles e fazendo com que os fãs se identifiquem com eles e se tornem cada vez mais leais. Esta abertura permite-nos uma melhor compreensão do que é preciso para ser um grande atleta, e as histórias inspiram milhares de pessoas. Mas com o bom vem o mau. Os jogadores passam cada vez mais tempo expostos; antes de entrarem em campo respondem a perguntas e assim que saem respondem novamente. Às vezes são entrevistados ao intervalo! No dia seguinte, em vez de treinar, têm um shoot publicitário, ou as filmagens para um documentário sobre a sua história pessoal. E alguns começam a chegar ao limite da paciência.

Depois de mais uma pergunta sobre a presumida fragilidade do lugar de Scott Brooks enquanto treinador dos Oklahoma City Thunder, uma das estrelas principais da equipa, Kevin Durant, foi curto e grosso com os jornalistas: "You guys really don't know shit". Mais tarde perguntaram-lhe em que tipo de questões preferia que os media se focassem. Mais uma vez a resposta não foi a que se estava à espera: 

"To be honest, man, I'm only here talking to y'all because I have to. So I really don't care. Y'all not my friends. You're going to write what you want to write. You're going to love us one day and hate us the next. That's part of it. So I just learn how to deal with y'all".

Kyle Terada - USA Today Sports




As críticas e respostas duras de Durant aos jornalistas aparecem pouco tempo depois de outra cena semelhante: Marshawn Lynch recusou várias vezes responder aos jornalistas durante o fim-de-semana do Super Bowl, dizendo que preferia concentrar-se no jogo. E com toda a razão.



Esta foi a primeira, em que apenas disse durante toda a entrevista "I'm here so I won't get fined".


Na segunda entrevista a resposta foi "You know why I'm here". Acho piada ao engraçadinho que, no fim, manda a boca de que ainda faltam uns segundos para acabar a entrevista. Tem piada, mas mostra que ele não percebeu realmente o porquê do protesto.

Eventualmente Lynch acabou por dar alguma resposta aos jornalistas, explicando que não queria dizer nada aos jornalistas para não deturparem o que diz, que queria concentrar-se no jogo e na sua família. Continuaram a fazer-lhe perguntas sobre multas da liga sobre o seu comportamento e equipamento fora das regras e ele voltou ao silêncio e às respostas vagas. 

Ainda há pouco tempo o Cristiano Ronaldo recebeu críticas aos montes por ter celebrado o seu 30º aniversário no dia da derrota do Real no derby de Madrid por 4-0. Numa festa marcada com antecedência e com a presença dos familiares que voaram de Portugal. Se calhar as críticas não foram pelo facto de a festa ter acontecido, mas porque o Ronaldo estava alegre e a cantar durante essa festa. Mas o que é que nós temos a ver com isso? É claro que ele estava contente, era a festa de anos dele! Estava rodeado de amigos e a última coisa em que ele queria pensar era na derrota. O Cristiano Ronaldo é conhecido por ser um dos desportistas mais dedicados do mundo e é incrível a pressão a que foi sujeito - por ter feito algo que apenas diz respeito à sua vida pessoal - ao ponto de ter vindo pedir desculpas aos adeptos (uma coisa que não combina bem com a personalidade de Ronaldo, que costuma estar bem com a sua consciência em relação às suas acções mais polémicas).



O que acontece é que, tanto sponsors como jornalistas e adeptos, por darem tanto das suas vidas e do seu dinheiro para fazer do desporto o que ele é hoje, sentem-se no poder para mandar nas vidas de quem está dentro de campo. Ou que sabemos mais sobre eles do que eles próprios. Depois da entrevista inicial ao Kevin Durant, ele explicou o porquê de ter tido uma atitude diferente da que costuma ter: 

"My first few years in the league, I was just finding myself. I think most of the time, I reacted based off of what everybody else wanted and how they viewed me as a person. I am just learning to be myself, not worrying about what everybody else says, I am going to make mistakes. I just want to show kids out there that athletes, entertainers, whoever, so-called celebrities, we aren't robots. We go through emotions and go through feelings and I am just trying to express mine and try to help people along the way. I am not going to sit here and tell you that I am just this guy that is programmed to say the right stuff all the time and politically correct answers. I am done with that. I am just trying to be me and continue to grow as a man."

A resposta dos media foi o mais assustador. Atribuíram esta frustração ao facto de Durant estar a ter um ano mau (dizem eles, porque ele voltou a fazer parte do jogo dos All-Stars), ou às lesões, ou a tudo e mais alguma coisa, recusando-se a aceitar a verdade: Durant está farto de ser exposto, de ouvir perguntas idiotas ou vazias de conteúdo, de ser mal interpretado e criticado. Durant foi várias vezes apelidade de "Sr. Inconsistente" pelos jornais, apesar de ter sido titular na equipa de All-Stars 5 anos consecutivos.

Os desportistas, tal como todas as outras figuras públicas que passam por este escrutínio, são tão humanos como nós. Muitos deles começam a ser alvo de críticas duras e intromissões à sua vida pessoal bem antes de terem uma personalidade convicta e uma confiança estável. E dinheiro nenhum no mundo dá a quem quer que seja o poder para limitar a liberdade destas pessoas. É verdade que há interacções positivas entre jornalistas e atletas, adeptos e atletas, e até patrocinadores ou patrões e atletas. Casos em que toda a gente fica a ganhar. Por isso, quando Durant diz que não lhe interessa que perguntas lhe fazem talvez esteja a ser injusto e a prejudicar a sua própria causa. Mas isso é o que acontece quando a frustração e os golpes à liberdade atingem o limite de cada um. Durant fechou-se aos jornalistas.

Kevin Durant foi o MVP da liga na época de 2013-14. Isto é parte do seu discurso de aceitação do prémio:



É claramente um momento emocional e importante na carreira do jogador, e o momento tem um peso quase solene. Mas a frase "You da real MVP", dirigida à sua mãe, passou a piada nas redes sociais. E essa apropriação às vezes tem mesmo piada. Mas outras é só uma exposição gratuita de algo que é considerado uma fraqueza numa estrela. O momento poderia ter ficado para a história como uma demonstração profunda de carinho e emoção, um exemplo para quem admira o jogador, mas acabou em gozo.

"I was like, man, that was a real emotional moment for me, and you making a joke about it! Like: Damn. Y'all don't really believe in shit. You don't have no morals or nothing. You don't care about nothing but just making fun. I was serious as hell saying that, you know what I'm saying?"





sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Os Jogos do Sério - Futebol Americano

No segundo número d'Os Jogos do Sério temos o "meu" desporto: Futebol Americano. Claro que a análise se foca mais no campeonato norte-americano, mas há coisas que servem também para os que se juntam a mandar umas bolas.



Watchability (isto é divertido de ver?): 7
Para ver ao vivo, é preciso que haja um ambiente incrível, caso contrário as interrupções frequentes podem tirar a pica do jogo. Ver pela televisão é bastante melhor porque os highlights  e as análises dos comentadores, cheias daqueles gráficos bonitos que os americanos usam, tornam a coisa muito mais fluida. O desporto em si é dos mais capazes de nos fazer saltar e berrar, e todo o espectáculo montado para cada jogo (e não é só na NFL, qualquer encontro da liga universitária americana tem milhares de pessoas a fazer um festão), ajuda a manter o ânimo. As regras básicas são fáceis de aprender, mas há muitas regras pequenas que nos deixam sem perceber algumas decisões dos árbitros. Aconselho que se veja com um grupo de amigos porque as reacções dos outros são do melhor.




Jogabilidade (isto é divertido e fácil de jogar?): 5
É bastante fácil de jogar, sobretudo porque existem várias funções em campo e cada uma tem um objectivo muito específico e limitado; por outro lado as pequenas regras e os playbooks são difíceis de entender à primeira. Além disso qualquer pessoa pode jogar, literalmente. Pequenos e grandes, mais ou menos atléticos, qualquer um tem corpo para o futebol americano. Na minha equipa temos gente entre os 55 e os 130kg, 1m60 e 2m. Divertido também é, porque existe sempre qualquer coisa que gostamos de fazer, desde o contacto físico dos linhas à velocidade e habilidade dos receivers. Mas é preciso gostar, ou pelo menos tolerar, o contacto físico duro e muitas pessoas desistem precisamente por isso. A repetição vezes e vezes sem conta das mesmas jogadas só serve para quem gosta de aperfeiçoar os mesmos movimentos e há jogadores que se cansam disso rapidamente.

Factor cool: 10
Tenho várias razões para este 10: o exotismo, as shoulder pads e capacetes - imagem de marca do desporto - e a espectacularidade das jogadas. Tudo isto conflui para criar um desporto com uma carga energética muito grande, associada a poderio e domínio físico num combate em campo.


Navigators vs Crusaders. A Liga Portuguesa de Futebol Americano está já na sexta edição

Handicap: -4
É preciso algum equipamento para jogar a sério. E o contacto físico é duro e não é para qualquer pessoa. As regrazinhas não ajudam nada a fluidez dos encontros e prejudicam tanto o espectáculo como a concentração dos jogadores.

FINAL SCORE: 18