sexta-feira, 13 de março de 2015

As diferentes maneiras de recordar um atleta

Há alturas em que o jornalismo desportivo português é um desgosto. Dia 10 de Março, um acidente entre dois helicópteros fez 10 vítimas mortais, entre as quais 3 atletas franceses (Camille Muffat, Alexis Vastine e Florence Arthaud), quando iam a caminho do local onde seria filmado um reality show - Dropped - seriam largados "no meio do nada" e teriam de regressar à base sem ajudas externas.

O "Record" do dia seguinte pintou uma história desinspirada sobre o assunto, lá nas últimas páginas e sob o tema "Modalidades", enumerando os atletas e alguns dos seus feitos, onde e a que horas se deu o acidente, referindo meia dúzia de reacções de outros atletas e François Hollande e compilando uma lista de outros acidentes aéreos envolvendo atletas. A reportagem começa assim: 

"Passadas mais de 24 horas do acidente que vitimou dez pessoas num choque entre dois helicópteros na Argentina, as causas continuam a ser desconhecidas, mas ninguém tem dúvidas que se trata da maior tragédia da história relacionada com a produção de um "reality show" de sobrevivência". 

Ler esta notícia nem é sequer triste, apesar do tema. Não faz nada por nós, não se esforça por recordar a memória dos atletas envolvidos nem nos aproxima do drama da situação.

Por sorte, li o "New York Times" do mesmo dia. Na capa tinha uma notícia com o título "She rode the waves, and broke barriers". Não reconheci quem era a pessoa na fotografia, mas percebi que seria alguém que tinha morrido num desastre de helicóptero no dia anterior. Era Florence Arthaud, apresentada pelo jornal como sendo "once the most popular sports figure in France: quite the achievement for a diminutive female sailor in a country with no shortage of soccer, rugby, basketball and tennis stars". A reportagem continuava na página 3 (sobre o acidente) e na página 13 (sobre Florence). A notícia sobre o acidente segue um caminho bastante normal, com as circunstâncias e os envolvidos, mas algumas citações dão-lhe uma profundidade digna do momento. Mas o texto sobre Florence Arthaud é completamente diferente e marcou a minha maneira de ver escrever sobre atletas. Resumo brevemente o artigo.



A sua popularidade nasce, primeiro que tudo, da ligação forte que os franceses têm com o acto de velejar, sobretudo a solo. 

"I think the French like solitary heroes: adventurers, travelers (...) I think our culture is more oriented toward the individual exploit, while the Angol-Saxons have a culture that's more oriented toward collective accomplishment. We seem to have trouble getting organized as a group", Isabelle Autissier, outra velejadora francesa. 

Quando, em 1990, Arthaud venceu a Route du Rhum, prova transatlântica quadrienal entre França e Guadalupe, ela venceu também o preconceito de que os homens são mais capazes de aguentar o rigor duma prova destas. Deram-lhe a alcunha de La Petite Fiancée de l'Atlantique e tornou-se numa estrela e num símbolo. Depois disso teve dificuldades em transformar esse feito em novas vitórias. Os problemas económicos em França nos anos 90 e o seu carácter tempestuoso tornaram difícil arranjar patrocinadores.

"Florence was someone extraordinary on the water but uncontrollable on land, and that worked against her. She ate. She drank. She smoked (...) That was without a doubt not to the taste of the sponsors. Look at today's sailors. They are more settled, more polished, more good boys", disse Autissier.

Arthaud não voltou a competir ao mais alto nível, mas isso não fez com que a geração seguinte de velejadores, e alguns até da sua geração, não se sentissem particularmente inspirados pela francesa. Autissier, Catherine Chabaud, Ellen MacArthur, todas grandes figuras do desporto e todas com um mesmo ídolo: Florence.

Participou pela primeira vez na Route du Rhum aos 21 anos, sendo a única mulher e a mais nova de entre todos os participante, terminando em 11º lugar. 12 anos depois bateu o recorde da travessia a solo do Atlântico mais rápida, em menos de 10 dias. Em Novembro do mesmo ano venceu a Route du Rhum. "Calm down!", gritou ao molhe de jornalistas e fotógrafos que a rodeavam depois dos 14 dias e 10 horas da prova em Guadalupe.

"I really don't think the world of sailors is a macho world. I think it's a world where people respect each other for their talents".
Em 2011, Florence Arthaud quase morreu quando caiu do seu barco durante a noite enquanto viajava na costa da Córsega. O veleiro continuou o percurso, em piloto automático, e Arthaud ficou para trás sem colete de salvação. Felizmente tinha ficado com o seu telemóvel e uma lanterna, com os quais conseguiu ligar a pedir assistência, que chegou duas horas depois. "I'm a surviver. The devil didn't want me". Arthaud viria a morrer quatro anos depois, num acidente de helicóptero.



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Nunca tinha ouvido falar de Florence Arthaud, mas esta breve notícia pintou-me uma imagem vívida de uma personalidade forte de alguém que fazia o que queria. E é assim que todos os grandes atletas, devem ser lembrados: pela maneira como nos tocaram fazendo aquilo que sabem melhor.


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